Category Archives: Cinema ao Ar Livre

19 de Outubro, 19h: “I Vitelloni – Os Inúteis”

Realizador: Federico Fellini

Intérpretes: Alberto Sordi, Franco Fabrizi, Franco Interlenghi

ITA/FRA, 1953, 100 ‘ M/12

Projecção autobiográfica das memórias da juventude de Fellini, em Rimini. Um grupo de rapazes (“os inúteis”) que preenche o vazio dos dias de farra em farra, de namorisco em namorisco; no fim, um deles percebe que tem que sair dali, e apanha um comboio para Roma – e essa personagem é o alter ego do realizador. Um dos melhores Fellinis de sempre, porventura o mais agridoce. Sequências notáveis; por exemplo, a festa, perto do final, onde o amanhecer vem anunciar às personagens aquilo que só elas ainda não perceberam: que estão completamente perdidas. Texto: Cinemateca Portuguesa
 
 

I Vitelloni foi o segundo filme inteiramente realizado por Fellini e o seu título significa literalmente “os bezerrões”, o que é particularmente bem escolhido.

Mario Verdone assinala no seu livro sobre o realizador que a expressão não era usada em Itália para designar este tipo de personagens, mas foi imediatamente aceite e entrou para o vocabulário comum.

O filme, que é um adeus de Fellini à sua primeira juventude, está repleto de elementos pessoais, quase autobiográficos, que vinte anos depois terão ecos em certas passagens de Roma e Amarcord (e, como em Il Sceicco Bianco, os recém-casados vão passar a lua-de-mel em Roma). Como I Vitelloni, Amarcord é situado numa oca cidade de província, que transpõe a Rimini natal do cineasta. O personagem do tio do jovem protagonista de Amarcord é um vitellone com todos os ff e rr, burro, infantil e parasita, que se gaba diante dos amigos das suas (talvez falsas) proezas sexuais com um copo de vermouth na mão.

Como Amarcord (“recordo-me”, no patois da região natal do realizador), I Vitelloni é situado no passado e a voz de um narrador em off intervém periodicamente, para lembrar-nos que o filme se situa no passado, que estamos diante de uma série de lembranças. Esta voz não é a de nenhum personagem visível no filme, é a deles todos ou a de um que se tinha ido dali para nunca mais voltar.

A presença, no papel de um dos bezerrões, de Riccardo Fellini, irmão do realizador, com o qual tem grande semelhança física, torna ainda mais evidente o laço extremamente pessoal do cineasta com esta narrativa. E tal qual o personagem de Moraldo (interpretado por Franco Interlenghi, um dos jovens engraxadores de Sciuscià) no desenlace do filme, Fellini teve de deixar a sua terra natal, demasiado pequena para ele, ainda que não soubesse para onde ia.

No começo de Roma, um jovem provinciano chega à capital, exatamente como o jovem futuro cineasta fizera aos dezanove anos, em Janeiro de 1939. Num raccord a dezasseis anos de distância, o rapaz que chega a Roma no começo de Roma também é o mesmo que vemos deixar a sua cidade natal em I Vitelloni e também o mesmo que pouco tempo antes estava no liceu na cidade onde se passa Amarcord. Todos eles são o jovem Fellini e são cada um de nós, espectadores dos seus filmes.

Fellini disse a propósito de I Vitelloni: “Os personagens já passaram largamente dos trinta e continuam a perorar e a repetir as mesmas partidas que pregavam quando eram crianças. Brilham durante a estação balnear, cuja espera os ocupa pelo resto do ano. São desempregados da burguesia, filhinhos da mamã. Mas também são pessoas de que gosto. Flaiano, Pinelli e eu começámos a discutir e como nós três somos ex-vitelloni cada um tinha montes de coisas para contar. Depois de uma série de histórias engraçadas, tivemos um grande acesso de melancolia e fizemos um filme”.

E este filme é dos mais belos e conseguidos de um realizador cuja imaginação não podia certamente ser contida dentro dos princípios estritos do primeiro neo-realismo (para cujo nascimento Fellini contribuiu, como co-argumentista de Paisà), independentemente do facto da reconstrução económica da Itália nos anos 50 ter tornado obsoleto o realismo que consiste em mostrar ruínas, fome e desemprego total e que, pura e simplesmente, já não correspondia à realidade.

Em 1960, Fellini declararia que “o neo-realismo fora uma impulsão enorme” (ao preparar Paisà, ele descobriu “uma Itália que não conhecia, pois o regime fascista tinha-nos literalmente vendado os olhos”), mas que para ele o cinema se assemelhava bastante ao circo. Mesmo num filme sóbrio e de fatura clássica como I Vitelloni a analogia com o circo é visível. Não há verdadeiramente personagem principal, embora a história de Fausto e Sandra sirva de fio condutor, não há tão pouco uma narrativa linear semelhante à de um romance do século XIX, como era regra no cinema e
não deixou inteiramente de o ser. As situações se sucedem, por vezes de modo repetitivo, numa narrativa que é circular como o picadeiro de um circo, embora em I Vitelloni não haja as “atracões” circenses que habitam outros filmes de Fellini.

O realizador, apaixonado pela banda-desenhada americana e que se estreara como co-realizador de um filme situado no teatro de revista, seguido de outro em que surge uma vedeta de fotonovelas, começa a narrativa numa festa popular, uma situação que tem alguma semelhança com o ambiente de um circo, antes de fechar a sequência com a revelação de um pequeno drama que vai alterar a vida dos vitelloni, fazendo-os passar da euforia de uma festa (e da criancice deles) às frias realidades da vida quotidiana.

Mais tarde, na sequência do Carnaval, Fellini utiliza a melodia da canção (cantada numa língua inexistente) de Modern Times, de Chaplin, o que é uma citação e uma homenagem, mas também uma maneira de situar o seu filme no domínio da fantasia, de um certo burlesco.
Esta sequência do Carnaval é um divisor de águas em I Vitelloni, marca o momento a partir do qual alguns personagens, até mesmo o caricato latin lover Fausto (futuramente, o actor seria o barbeiro que “embeleza” Dirk Bogarde no final de A Morte em Veneza…), cujo infantilismo tem uma consequência lógica (a sova de cinto que lhe dá o pai) percebem que já não pode haver fuga para a frente e que a vida teria de ser diferente. O desenlace é aberto e agridoce, o que faz deste filme um exemplo acabado do cinema clássico, com pormenores que permitem vislumbrar o que virá a ser o cinema moderno.

Antonio Rodrigues – Cinemateca Portuguesa

15 de Setembro, 21.30h: Piscinas – “Prazer, Camaradas!”

prazer-camaradas-web-PT

Realizador: José Filipe Costa

Documentário

POR, 2019, 105′ M/12

Com produção de Uma Pedra no Sapato e realização de José Filipe Costa, “Prazer, Camaradas!” – que teve estreia internacional em Agosto de 2019, no Festival de Locarno (Suíça) – junta histórias vividas em cooperativas e aldeias portuguesas no pós-25 de Abril de 1974, contadas por portugueses e estrangeiros que as viveram. Na trama, alguns dos actores são as pessoas que, em 1975, vieram ou regressaram a Portugal para participar na revolução. “Não podia pôr actores a fazerem isto como na época, nem usar actores-estátuas a dizerem textos”, explica Costa. “Como então pôr os documentos a falar? E tive esta ideia de pôr estas pessoas com 61 e tal anos neste limbo. O jogo era muito simples, eles viverem com aquele corpo como se estivessem a viver no passado, e eu não sabia o que ia sair daí, e fui sendo surpreendido, muito surpreendido.”
 
 

O 25 de Abril em tom de “comédia de costumes”
Com “Prazer, Camaradas!”, José Filipe Costa revisita o tempo em que jovens vindos do estrangeiro chegaram a Portugal para conhecer a revolução… Um belo exercício de questionamento histórico, subtil e pleno de humor.

De que falamos quando falamos do 25 de Abril? Eis uma questão básica, de uma só vez histórica e simbólica, que justifica algo mais do que uma resposta “panfletária”. Em termos cinematográficos, entenda-se. Trata-se, sobretudo, de saber que linguagens usamos para preencher e, de alguma maneira, resgatar a distância que nos separa dos eventos que puseram fim à ditadura do Estado Novo.

“Prazer, Camaradas!” é um filme que adopta uma estratégia tão inesperada quanto envolvente, até porque há nele uma dinâmica de “comédia de costumes” que lhe confere um humor insólito e contagiante. O objectivo é evocar o envolvimento de jovens vindos do estrangeiro com aqueles que, nas cooperativas de herdadas ocupadas, protagonizavam a ideia, e o ideal, de construir novas formas de vida.

A realização de José Filipe Costa distancia-se dos lugares-comuns “ilustrativos”, banalmente televisivos, quase sempre guiados por uma cândida cegueira artística: bastaria “reconstituir”, “imitando”, para nos ser devolvida a verdade original dos acontecimentos. Ora, aqui, tudo se baralha — e esclarece — porque os “velhos” de hoje estão a interpretar os “novos” de há quase meio século. Como num espelho.

Talvez importe não dizer mais do que isto, de modo a não esvaziar o calculado efeito de surpresa que o filme explora no seu lançamento… Sublinhe-se apenas que “Prazer, Camaradas!” estabelece esse ziguezague passado/presente através de um riso saudável, capaz de lidar com as convulsões de tudo o que aconteceu.

Nessas convulsões inclui-se um repensar da sexualidade e, mais do que isso, um leque de dúvidas e interrogações sobre o lugar prático & simbólico das mulheres face às regras e mecanismos do poder masculino. Nesta perspectiva, este é um filme que consegue algo cada vez mais raro: não a identificação escapista de “culpados”, mas uma memória de muitos contrastes — por vezes comovente, outras irresistivelmente sarcástica — reflectindo todas as inocências perdidas.

Crítica de João Lopes

8 de Setembro, 21.30h: Piscinas: “I Vitelloni – Os Inúteis”

Realizador: Federico Fellini

Intérpretes: Alberto Sordi, Franco Fabrizi, Franco Interlenghi

ITA/FRA, 1953, 100 ‘ M/12

Projecção autobiográfica das memórias da juventude de Fellini, em Rimini. Um grupo de rapazes (“os inúteis”) que preenche o vazio dos dias de farra em farra, de namorisco em namorisco; no fim, um deles percebe que tem que sair dali, e apanha um comboio para Roma – e essa personagem é o alter ego do realizador. Um dos melhores Fellinis de sempre, porventura o mais agridoce. Sequências notáveis; por exemplo, a festa, perto do final, onde o amanhecer vem anunciar às personagens aquilo que só elas ainda não perceberam: que estão completamente perdidas. Texto: Cinemateca Portuguesa
 
 

I Vitelloni foi o segundo filme inteiramente realizado por Fellini e o seu título significa literalmente “os bezerrões”, o que é particularmente bem escolhido.

Mario Verdone assinala no seu livro sobre o realizador que a expressão não era usada em Itália para designar este tipo de personagens, mas foi imediatamente aceite e entrou para o vocabulário comum.

O filme, que é um adeus de Fellini à sua primeira juventude, está repleto de elementos pessoais, quase autobiográficos, que vinte anos depois terão ecos em certas passagens de Roma e Amarcord (e, como em Il Sceicco Bianco, os recém-casados vão passar a lua-de-mel em Roma). Como I Vitelloni, Amarcord é situado numa oca cidade de província, que transpõe a Rimini natal do cineasta. O personagem do tio do jovem protagonista de Amarcord é um vitellone com todos os ff e rr, burro, infantil e parasita, que se gaba diante dos amigos das suas (talvez falsas) proezas sexuais com um copo de vermouth na mão.

Como Amarcord (“recordo-me”, no patois da região natal do realizador), I Vitelloni é situado no passado e a voz de um narrador em off intervém periodicamente, para lembrar-nos que o filme se situa no passado, que estamos diante de uma série de lembranças. Esta voz não é a de nenhum personagem visível no filme, é a deles todos ou a de um que se tinha ido dali para nunca mais voltar.

A presença, no papel de um dos bezerrões, de Riccardo Fellini, irmão do realizador, com o qual tem grande semelhança física, torna ainda mais evidente o laço extremamente pessoal do cineasta com esta narrativa. E tal qual o personagem de Moraldo (interpretado por Franco Interlenghi, um dos jovens engraxadores de Sciuscià) no desenlace do filme, Fellini teve de deixar a sua terra natal, demasiado pequena para ele, ainda que não soubesse para onde ia.

No começo de Roma, um jovem provinciano chega à capital, exatamente como o jovem futuro cineasta fizera aos dezanove anos, em Janeiro de 1939. Num raccord a dezasseis anos de distância, o rapaz que chega a Roma no começo de Roma também é o mesmo que vemos deixar a sua cidade natal em I Vitelloni e também o mesmo que pouco tempo antes estava no liceu na cidade onde se passa Amarcord. Todos eles são o jovem Fellini e são cada um de nós, espectadores dos seus filmes.

Fellini disse a propósito de I Vitelloni: “Os personagens já passaram largamente dos trinta e continuam a perorar e a repetir as mesmas partidas que pregavam quando eram crianças. Brilham durante a estação balnear, cuja espera os ocupa pelo resto do ano. São desempregados da burguesia, filhinhos da mamã. Mas também são pessoas de que gosto. Flaiano, Pinelli e eu começámos a discutir e como nós três somos ex-vitelloni cada um tinha montes de coisas para contar. Depois de uma série de histórias engraçadas, tivemos um grande acesso de melancolia e fizemos um filme”.

E este filme é dos mais belos e conseguidos de um realizador cuja imaginação não podia certamente ser contida dentro dos princípios estritos do primeiro neo-realismo (para cujo nascimento Fellini contribuiu, como co-argumentista de Paisà), independentemente do facto da reconstrução económica da Itália nos anos 50 ter tornado obsoleto o realismo que consiste em mostrar ruínas, fome e desemprego total e que, pura e simplesmente, já não correspondia à realidade.

Em 1960, Fellini declararia que “o neo-realismo fora uma impulsão enorme” (ao preparar Paisà, ele descobriu “uma Itália que não conhecia, pois o regime fascista tinha-nos literalmente vendado os olhos”), mas que para ele o cinema se assemelhava bastante ao circo. Mesmo num filme sóbrio e de fatura clássica como I Vitelloni a analogia com o circo é visível. Não há verdadeiramente personagem principal, embora a história de Fausto e Sandra sirva de fio condutor, não há tão pouco uma narrativa linear semelhante à de um romance do século XIX, como era regra no cinema e
não deixou inteiramente de o ser. As situações se sucedem, por vezes de modo repetitivo, numa narrativa que é circular como o picadeiro de um circo, embora em I Vitelloni não haja as “atracões” circenses que habitam outros filmes de Fellini.

O realizador, apaixonado pela banda-desenhada americana e que se estreara como co-realizador de um filme situado no teatro de revista, seguido de outro em que surge uma vedeta de fotonovelas, começa a narrativa numa festa popular, uma situação que tem alguma semelhança com o ambiente de um circo, antes de fechar a sequência com a revelação de um pequeno drama que vai alterar a vida dos vitelloni, fazendo-os passar da euforia de uma festa (e da criancice deles) às frias realidades da vida quotidiana.

Mais tarde, na sequência do Carnaval, Fellini utiliza a melodia da canção (cantada numa língua inexistente) de Modern Times, de Chaplin, o que é uma citação e uma homenagem, mas também uma maneira de situar o seu filme no domínio da fantasia, de um certo burlesco.
Esta sequência do Carnaval é um divisor de águas em I Vitelloni, marca o momento a partir do qual alguns personagens, até mesmo o caricato latin lover Fausto (futuramente, o actor seria o barbeiro que “embeleza” Dirk Bogarde no final de A Morte em Veneza…), cujo infantilismo tem uma consequência lógica (a sova de cinto que lhe dá o pai) percebem que já não pode haver fuga para a frente e que a vida teria de ser diferente. O desenlace é aberto e agridoce, o que faz deste filme um exemplo acabado do cinema clássico, com pormenores que permitem vislumbrar o que virá a ser o cinema moderno.

Antonio Rodrigues – Cinemateca Portuguesa

 

 

1 de Setembro, 21.30h: Piscinas: “Miss Marx”

Realizador: Susanna Nicchiarelli

Intérpretes: Romola Garai, Patrick Kennedy, John Gordon Sinclair, Felicity Montagu, Philip Gröning

ITA/BEL, 2020, 107′ M/12

Eleanor (Romola Garai), a filha mais nova do filósofo e sociólogo Karl Marx (Philip Gröning), era uma mulher inteligente, culta e de espírito livre. Uma das promotoras do socialismo no Reino Unido, tomou parte activa nas lutas dos trabalhadores como activista sindical, na luta pela emancipação feminina e na tentativa de abolição do trabalho infantil. Em 1883, conheceu o biólogo e dramaturgo Edward Aveling (Patrick Kennedy) por quem se apaixonou perdidamente. Mas Edward era, simultaneamente, alguém que admirava e detestava, e enredou-a numa moral opressora contra a qual ela toda a vida lutara.
 
 

Eleanor Marx, audaz ontem e hoje

Este biopic da filha mais nova de Karl Marx faz curto-circuito entre a emoção e a razão, o marxismo e o punk, o século XIX e os nossos dias. Susanna Nicchiarelli assina “Miss Marx”.

Eleanor Marx tem 28 anos quando o pai morre em Londres, a 14 de Março de 1883. E é com o funeral de Karl Marx que a italiana Susanna Nicchiarelli arranca o seu novo filme, data bem impressa no ecrã, algarismos garrafais para que ninguém se engane. Daí haveremos de saltar para 1890, já a relação sentimental dela com Edward Aveling está a consumi-la. E depois para 1895, ano da morte de Engels, figura tão importante nesta história. Chegaremos por fim ao ano da morte da própria Eleanor, em 1898, e foi ela quem escolheu quando e como: optou pelo suicídio. São os últimos 15 anos da vida de uma mulher que a atriz Romola Garai vai interpretar admiravelmente. Mas pese embora os tais algarismos garrafais que vão folheando o calendário — já o mesmo se sentira em “Nico, 1988”, obra anterior de Nicchiarelli e outro drama biográfico sobre uma mulher a caminho da autodestruição — poucas vezes o ‘filme de época’ e a noção de biopic que vulgarmente damos ao género foram tão atacados no cinema contemporâneo como em “Miss Marx.”

Respeita Nicchiarelli o texto e as coisas de oitocentos? Sim, sem a menor dúvida. Uma boa parte do guião é extraído tel quel de cartas escritas (ou recebidas) por Eleanor. E quanto a categorias técnicas – décors, guarda-roupa, penteados, etc. — o filme é bastante cuidado, não fica atrás de uma produção BBC. O que nada tem de filme BBC são aqueles momentos em que Romola Garai se vira para nós em regard caméra, como a Monika dos desejos de Bergman, a Karina de Godard, ou o Léaud de Truffaut. O que nada tem de filme BBC é a música punk dos americanos Downtown Boys, a banda que gravou o álbum “Full Communism” e fez uma cover de ‘Dancer in the Dark’, de Springsteen — é agitação que chega aos altifalantes quando menos se espera (da mesma forma provocatória com que os ténis All Star entravam em “Marie Antoinette”, de Sofia Coppola).
Com este tipo de efeitos, que são provocações à audiência, pretende Nicchiarelli dar à sua heroína uma reverberação sem tempo, isto é: a missão de “Miss Marx” é arrancar Eleanor Marx do século XIX para a servir no século XXI. Afinal, a ativista pelos direitos dos trabalhadores que tinha por mote de vida a frase “go ahead”, a feminista “avant la lettre” que se bateu em Londres pela igualdade dos géneros e traduziu para inglês Flaubert, tem ainda muito a dizer aos espectadores de hoje, embora a maioria destes mal saiba que ela existiu.


Miss Marx” estreou-se no ano passado em Veneza, numa edição que conseguiu passar incólume à pandemia. É a história de “uma grande feminista que traduziu e trouxe ‘Madame Bovary’ para Inglaterra e que acabou como ela, destruída pelas suas paixões”, contou-nos Nicchiarelli na esplanada do Hotel Hungaria, no Lido. “Achei esta contradição interessante, disse-me que havia aqui um filme a fazer. Porque as contradições, de facto, não param em torno dela”, continuou. “Sempre acreditei no slogan feminista que diz que o que é privado também é político. A forma como vivemos as nossas relações tem de passar por esta perspetiva, especialmente quando somos mulheres. Ora, Eleanor, mulher forte e emancipada, lutadora segura dos seus direitos, consciente das batalhas que tinha de travar — tinha, aliás, o dom de transmitir em público com invulgar transparência os pensamentos do pai — apaixona-se por um homem [Edward Aveling] que a vai desgastar e acaba por deitá-la abaixo.”


Enquanto escrevia o guião de “Miss Marx”, filme inteiramente rodado em inglês com elenco quase todo britânico (excepção à leitura de uma carta em alemão de Karl Marx, interpretado pelo cineasta Philip Gröning), Nicchiarelli só se perguntava porque é que aquela mulher brilhante nunca abandonou o “traste”. “Toda a gente lhe dizia para deixar Edward. Isto é muito claro na leitura das cartas. A verdade é que ela não o fez. E eles passaram 15 anos juntos. Ela fez-me pensar muito nas minhas próprias relações que não funcionaram. E em homens que não sabem desenvencilhar-se de certas situações em que se metem. Há relações que criam estranhas formas de dependência. Tornam-se tóxicas, viciantes como uma droga. O meu filme fala muito disto.”


E contudo, não é o dark side de Eleanor (o mesmo que ela já encontrara na junkie Nico dos últimos anos de vida da cantora) que Nicchiarelli quer sublinhar, antes a clarividência política de batalhas que continuam a ser válidas hoje. “No princípio do filme”, continua a cineasta, “ela diz que o futuro está do nosso lado. E isso comove-me, é forte. A vida alienada dos trabalhadores do século XIX — pilar máximo do pensamento marxista — continua a existir na nossa sociedade”. Dito isto, é importante frisar que “Miss Marx” não é definido por uma ideologia. Pelo contrário, o filme fala muito mais da forma como a ideologia interage com a realidade e entra em conflito com a esfera privada de cada um de nós. Veja-se o caso dos autores do Manifesto Comunista, Marx e Engels, defensores das classes operárias, mas burgueses por inteiro nas suas vidas e dentro das suas casas — sobretudo Engels, homem rico e de quem Marx dependia financeiramente.


É curioso, por exemplo, que o filme dê tanto enfoque a Fredrick Demuth, o filho ilegítimo de Marx com a criada da família e que aquele jamais reconheceu. Foi um segredo que durou décadas com a conivência de Engels e que magoou profundamente Eleanor, omitido (ou remetido para nota de rodapé) ao longo de gerações por muitos marxistas que não quiseram ver manchada a reputação do mentor. Também por este episódio é alimentada a decepção da protagonista e a sua vontade de quebrar o fingimento da sociedade que a rodeia. Este aspeto ganha especial evidência naquele que é porventura o melhor momento do filme, o fabuloso trompe l’oeil da cena em que Eleanor e Edward parecem finalmente estar dispostos a enfrentar com coragem os problemas que os afetam — quando, na verdade, estão apenas a interpretar uma passagem de “Casa das Bonecas”, de Ibsen (outro texto que Eleanor traduziu).


“As nossas convicções são uma coisa, as nossas emoções são outra e com frequência levam-nos para uma direção oposta”, concluiu Nicchiarelli. “Acho que Eleanor é uma vítima disto. Ela não se suicidou por um motivo particular. Não foi por desgosto de amor, estava mais do que habituada às traições de Edward. Também não foi pelo cansaço de uma luta política que começava a cair em saco roto. Foi por tudo isto em conjunto. Percebeu que era melhor retirar-se, ‘sair de cena’, do que ficar para sempre a tratar das galinhas no quintal… Há uma maneira de desistir das coisas que me irrita, porque é cobardia. Mas Eleanor não desiste, não deixa de lutar. Tem a sua vida sob controlo até à última decisão.”

Francisco Ferreira, in Expresso

25 de Agosto, 21.30h: Piscinas: “Billie”

Realizador: James Erskine

Documentário

GB, 2019, 98′ M/12

Lady Day foi uma das maiores vocalistas da história do jazz. Em 1971, a jornalista Linda Lipnack Kuehl decidiu escrever a biografia definitiva de Billie Holiday. Antes da sua morte em 1978, Kuehl gravou mais de 200 horas de entrevistas. As fitas nunca foram ouvidas. Agora, formam a base de um documentário atmosférico com várias camadas que captura as facetas complexas de uma mulher negra orgulhosa, viciada em drogas, violenta, leal, amante vingativa e cantora inesquecível.
 
 

Documentar é, antes do mais, valorizar os documentos
Mais um documentário sobre uma personalidade lendária do mundo do jazz: “Billie”, realizado por James Erskine, evoca a vida atribulada de Billie Holiday através de um criterioso tratamento de materiais filmados e fotográficos.

Não será uma vaga temática, muito menos um movimento conceptual. Nem sequer se poderá definir como uma moda. O certo é que, em anos recentes, de “Amy” (2015), documentário sobre Amy Winehouse, a “Rocketman” (2019), dedicado a Elton John, têm surgido diversos títulos apostados em refazer, recriar e reavaliar algumas vidas mais ou menos atribuladas do mundo da música.
“Billie”, realizado pelo britânico James Erskine, é mais um sintoma desse estado de coisas: uma revisitação de carácter documental da história convulsiva de Billie Holiday (1915-1959). E o menos que se pode dizer é que as suas memórias possuem um fortíssimo apelo emocional: primeiro, pelo modo como toda a sua existência foi marcada por diversas formas de toxicodependência; depois, pelas perseguições de que foi alvo, em particular pela sua insistência em cantar “Strange Fruit”, tema que denunciava o linchamento de afro-americanos no sul dos EUA.
A circunstância de “Billie” surgir (no mercado português) ao mesmo tempo de “Estados Unidos vs. Billie Holiday” poderá suscitar comparações mais ou menos sugestivas, nomeadamente no tratamento de algumas situações emblemáticas. Ainda assim, creio que vale a pena separar as águas. E não apenas porque a ficção me parece menos motivadora que o documentário — sobretudo porque o trabalho de Erskine sabe valorizar os documentos que recolhe e remonta.

Estamos, de facto, perante um caso exemplar de utilização de materiais de arquivo. O seu tratamento evita aquelas colagens “aceleradas” que, em última instância, se ficam pela indiferença face às figuras que evocam ou tentam retratar. Acima de tudo, Erskine sabe criar tempos de percepção para aqueles materiais, com a particularidade de a sua recolha não se esgotar no domínio do filme ou da televisão — “Billie” é também um documentário que sabe olhar, e dar a ver, os registos fotográficos.

Crítica de João Lopes