Realizador: Federico Fellini
Intérpretes: Alberto Sordi, Franco Fabrizi, Franco Interlenghi
ITA/FRA, 1953, 100 ‘ M/12
I Vitelloni foi o segundo filme inteiramente realizado por Fellini e o seu título significa literalmente “os bezerrões”, o que é particularmente bem escolhido.
Mario Verdone assinala no seu livro sobre o realizador que a expressão não era usada em Itália para designar este tipo de personagens, mas foi imediatamente aceite e entrou para o vocabulário comum.
O filme, que é um adeus de Fellini à sua primeira juventude, está repleto de elementos pessoais, quase autobiográficos, que vinte anos depois terão ecos em certas passagens de Roma e Amarcord (e, como em Il Sceicco Bianco, os recém-casados vão passar a lua-de-mel em Roma). Como I Vitelloni, Amarcord é situado numa oca cidade de província, que transpõe a Rimini natal do cineasta. O personagem do tio do jovem protagonista de Amarcord é um vitellone com todos os ff e rr, burro, infantil e parasita, que se gaba diante dos amigos das suas (talvez falsas) proezas sexuais com um copo de vermouth na mão.
Como Amarcord (“recordo-me”, no patois da região natal do realizador), I Vitelloni é situado no passado e a voz de um narrador em off intervém periodicamente, para lembrar-nos que o filme se situa no passado, que estamos diante de uma série de lembranças. Esta voz não é a de nenhum personagem visível no filme, é a deles todos ou a de um que se tinha ido dali para nunca mais voltar.
A presença, no papel de um dos bezerrões, de Riccardo Fellini, irmão do realizador, com o qual tem grande semelhança física, torna ainda mais evidente o laço extremamente pessoal do cineasta com esta narrativa. E tal qual o personagem de Moraldo (interpretado por Franco Interlenghi, um dos jovens engraxadores de Sciuscià) no desenlace do filme, Fellini teve de deixar a sua terra natal, demasiado pequena para ele, ainda que não soubesse para onde ia.
No começo de Roma, um jovem provinciano chega à capital, exatamente como o jovem futuro cineasta fizera aos dezanove anos, em Janeiro de 1939. Num raccord a dezasseis anos de distância, o rapaz que chega a Roma no começo de Roma também é o mesmo que vemos deixar a sua cidade natal em I Vitelloni e também o mesmo que pouco tempo antes estava no liceu na cidade onde se passa Amarcord. Todos eles são o jovem Fellini e são cada um de nós, espectadores dos seus filmes.
Fellini disse a propósito de I Vitelloni: “Os personagens já passaram largamente dos trinta e continuam a perorar e a repetir as mesmas partidas que pregavam quando eram crianças. Brilham durante a estação balnear, cuja espera os ocupa pelo resto do ano. São desempregados da burguesia, filhinhos da mamã. Mas também são pessoas de que gosto. Flaiano, Pinelli e eu começámos a discutir e como nós três somos ex-vitelloni cada um tinha montes de coisas para contar. Depois de uma série de histórias engraçadas, tivemos um grande acesso de melancolia e fizemos um filme”.
E este filme é dos mais belos e conseguidos de um realizador cuja imaginação não podia certamente ser contida dentro dos princípios estritos do primeiro neo-realismo (para cujo nascimento Fellini contribuiu, como co-argumentista de Paisà), independentemente do facto da reconstrução económica da Itália nos anos 50 ter tornado obsoleto o realismo que consiste em mostrar ruínas, fome e desemprego total e que, pura e simplesmente, já não correspondia à realidade.
Em 1960, Fellini declararia que “o neo-realismo fora uma impulsão enorme” (ao preparar Paisà, ele descobriu “uma Itália que não conhecia, pois o regime fascista tinha-nos literalmente vendado os olhos”), mas que para ele o cinema se assemelhava bastante ao circo. Mesmo num filme sóbrio e de fatura clássica como I Vitelloni a analogia com o circo é visível. Não há verdadeiramente personagem principal, embora a história de Fausto e Sandra sirva de fio condutor, não há tão pouco uma narrativa linear semelhante à de um romance do século XIX, como era regra no cinema e
não deixou inteiramente de o ser. As situações se sucedem, por vezes de modo repetitivo, numa narrativa que é circular como o picadeiro de um circo, embora em I Vitelloni não haja as “atracões” circenses que habitam outros filmes de Fellini.
O realizador, apaixonado pela banda-desenhada americana e que se estreara como co-realizador de um filme situado no teatro de revista, seguido de outro em que surge uma vedeta de fotonovelas, começa a narrativa numa festa popular, uma situação que tem alguma semelhança com o ambiente de um circo, antes de fechar a sequência com a revelação de um pequeno drama que vai alterar a vida dos vitelloni, fazendo-os passar da euforia de uma festa (e da criancice deles) às frias realidades da vida quotidiana.
Mais tarde, na sequência do Carnaval, Fellini utiliza a melodia da canção (cantada numa língua inexistente) de Modern Times, de Chaplin, o que é uma citação e uma homenagem, mas também uma maneira de situar o seu filme no domínio da fantasia, de um certo burlesco.
Esta sequência do Carnaval é um divisor de águas em I Vitelloni, marca o momento a partir do qual alguns personagens, até mesmo o caricato latin lover Fausto (futuramente, o actor seria o barbeiro que “embeleza” Dirk Bogarde no final de A Morte em Veneza…), cujo infantilismo tem uma consequência lógica (a sova de cinto que lhe dá o pai) percebem que já não pode haver fuga para a frente e que a vida teria de ser diferente. O desenlace é aberto e agridoce, o que faz deste filme um exemplo acabado do cinema clássico, com pormenores que permitem vislumbrar o que virá a ser o cinema moderno.
Antonio Rodrigues – Cinemateca Portuguesa